O café está na xícara e Lílian
aproveita o momento para contar de um probleminha que está tendo com uma
colega.
“Deixa
eu contar então. Eu estou com um problema com uma menina da minha sala. No
começo eu ficava perto dela, pois era a única que conversava comigo. Mas com o
tempo, fui percebendo que não gosto dela. E não sei bem como agir diante dessa
situação”.
Eu
lembro quando eu comecei a mentir sabe? Se é que se pode chamar de “ser
agradável quando você quer despachar” de mentira. Há alguns anos atrás, eu ouvi
meus pais conversando sobre um amigo deles. Esse “amigo”, que era um colega de
trabalho da minha mãe, tinha os convidado para um jantar, e os dois não
queriam. Minha mãe dizia que não gostava de mentir, e achava que eles tinham
que ser sinceros com o colega. Meu pai queria dizer que eles tinham outro
compromisso, ou que estavam cansados. E apesar da minha mãe dizer que não
gostava de mentir ela estava lá ouvindo o meu pai, como se em algum momento ele
fosse chegar na “melhor mentira”. Eu entrei na sala e perguntei: porque vocês
não falam para ele que vocês não querem ir? Eles ficaram sem graça, primeiro
porque eu estava ouvindo. No fundo eles sabem que tem que ensinar “boas
maneiras”, mas bem, o que são boas maneiras? Deixar o amigo triste e pensativo
“porque eles não querem vir?” ou deixar o amigo chateado “ah, pena que eles têm
que trabalhar”. Depois de algum tempo, meu pai se enrolando para me dar alguma
resposta, eu perguntei outra coisa: se vocês não gostam de sair com ele, porque
saem?
Meus
pais começaram a explicar ali algumas regras de convivência. Dentre elas é pregar
uma mentirinha “social” e atender algumas regras e exigências sociais. Eu não sei
se gosto ou não gosto dessas regras. Elas já me salvaram mas em geral elas até
hoje me perseguem e eu sempre tenho um conflito terrível: falar o que realmente
penso ou ser agradável e atender as regras sociais de convivência. Eu tentei
algumas vezes falar diretamente o que penso. Mas isso em geral acabou mal. Só com
alguns bons amigos se dá para ter esses momentos. Ah! E quando acontecem, são libertadores.
Com os outros, provavelmente parece simplesmente essa menina agradável e
sorridente. Eu até gosto dela. Somente às vezes. Porque em certas
circunstâncias, ela me irrita e me torna uma pessoa insegura e boba.
Bom,
isso quer dizer que o fato de eu ter aprendido a mentir tem a mesma raiz da
minha insegurança. Na verdade a mentira nada mais é que gole de incerteza sobre
você tomado diariamente. No fim, cadê você? E é isso que estou procurando
agora. Essa menina, a que estou tendo problemas, é uma chata. Ela fica falando
durante a aula e eu gosto de prestar atenção. Em alguns professores presto
atenção por regra. Afinal, tenho que ir bem na escola para depois fazer
faculdade (mais uma regra?). Em alguns professores eu nem reparo que estou
prestando atenção. Eu estou simplesmente envolvida na aula e quando percebo
saio feliz, renovada e cheia de ideias novas. Essa menina mata isso de mim. O
problema nem é tanto a quantidade de conversas cuspidas durante a aula. Acho
que é o conteúdo. É sempre o nosso camarada Jesus. Ela coloca toda a
responsabilidade do mundo nas costas desse camarada. “Jesus vai me direcionar
um caminho”, “Jesus vai me fazer tirar uma nota boa”, “Jesus vai cozinhar para
mim”. É quase isso. Ela pode simplesmente sentar, que Jesus vai fazer tudo por
ela.
Além
do mais, ela ri do próprio sofrimento. Ela conta uma história dramática rindo.
Um riso assim meio de bruxa, me dá calafrios. Ela contou que o irmão dela “tem”
transtorno obsessivo compulsivo. Por estranho que pareça, não foi Jesus que
“colocou” a “doença” nele. Ao contar, ela ria, jogava a cabeça para trás,
arrumava os cabelos gigantescos e ria. Não sei. Ela me faz mal. Perto dela eu
sempre sinto que preciso de um café. E depois preciso de um dos remédios que o
irmão dela toma, e depois preciso simplesmente sair correndo e gritando.
Aí
a pergunta surge: Devo dizer para essa menina que não quero mais ser “amiga”
dela? Eu não sou amiga dela. Mas sinto que ela me rotula como amiga dela. Eu
não sei quando se inicia uma amizade. No nosso caso, depois de duas horas de
conversa ela já cria que era minha amiga. Mas eu a conheço há meses e não me
sinto nada sua amiga. Muito menos agora. Nesse momento eu definitivamente
gostaria que os pais dela resolvessem se mudar de país e a levassem embora.
Eu
sei que vocês vão me dizer para se afastar dela. O problema é que eu não só
aprendi as regras sociais, eu aprendi a ser agradável. Bá, isso aí acabou
comigo. Eu li também Pequeno Príncipe quando era criança e o Exupéry me colocou
numa enrascada. Agora acho que todo mundo que gosta de mim eu devo ser amiga ou
retribuir de alguma forma. Mas não fica claro no livro essa questão: se uma
pessoa gostar de você, e você não gostar muito dela, mas mesmo assim ela fica a
te cumprimentar, a contar coisas sobre ela, a achar que você é uma amiga, isso
significa então fudeu? Se eu a cativei, terei que ser responsável por ela? Mesmo
se não fiz nada demais, só existi perto dela? Apesar do pequeno príncipe passar
um tempão conversando com a flor, cuidando dela, e aí sim eles iniciarem uma
amizade, tem gente que você fala “oi” e ela já é tua melhor amiga, já te
adiciona no Face e escreve “Miga, te adoro”, “Linda”. Ai que saco. Tenho um
primo gatíssimo, que tem mil mulheres adicionadas no Face dele. Ele olha para
elas, e pronto, tá lá “Chatinha quer te adicionar como amigo”. Que isso meu,
esse pessoal é carente demais ou o que? E depois ainda cobram a amizade “ai
você nem me dá atenção”. Eu nunca dei! Você que inferiu que eu dei e já me
cobra “regras” que nunca foram esclarecidas.
E
aí, até que ponto vocês são “agradáveis” e como consequência dessa regra social
carregam um nervosismo para casa? Em algum lugar nós descontamos, não?
Lílian
Lílian